Carl Sagan, dentre muitas coisas, era um sábio cósmico, leitor voraz, romântico irremediável, e brilhante filósofo. Mas acima de tudo, ele permanece como o maior “santo padroeiro” da razão e do bom senso em nossa era, um mestre do equilíbrio vital entre o ceticismo e a abertura de ideias. Em “O Mundo Assombrado pelos Demônios: A Ciência vista como uma vela no escuro” – o mesmo volume indispensável que nos propiciou intermináveis reflexões de Sagan sobre ciência e espiritualidade, publicado poucos meses antes de sua morte em 1996 – Sagan compartilha seu segredo para defender os ritos da razão, mesmo em face das inverdades mais vergonhosas da sociedade e de propagandas escandalosas.

Através de sua formação, os cientistas são equipados com o que Sagan chama de um “kit de detecção de mentiras” – um conjunto de ferramentas cognitivas e técnicas que fortalecem a mente contra a penetração de falsidades:
"O kit é abordado como um procedimento natural sempre que novas ideias são oferecidas para consideração. Se a nova ideia sobrevive ao exame pelas ferramentas em nosso kit, nós a concedemos aceitação calorosa, embora hesitante. Se você é propenso a isso, se você não quiser aceitar besteiras mesmo quando é reconfortante fazê-lo, há precauções que podem ser tomadas; há um método testado e aprovado pelos usuários."
Mas o kit, argumenta Sagan, não é apenas uma ferramenta da ciência – em vez disso, ele contém ferramentas inestimáveis de ceticismo saudável que se aplicam tão elegantemente, e tão necessariamente, à vida cotidiana. Ao adotar o kit, todos nós podemos nos proteger contra a fraude ignorante e a manipulação deliberada. Sagan compartilha nove destas ferramentas:
"1 – Sempre que possível, deve haver confirmação independente dos “fatos”.2 – Devemos estimular um debate substancial sobre as evidências por notórios partidários de todos os pontos de vista.3 – Os argumentos de autoridade têm pouca importância– as“autoridades” cometeram erros no passado. Voltarão a cometê-los no futuro. Uma forma melhor de expressar essa ideia é talvez dizer que na ciência não existem autoridades, quando muito, há especialistas4 – Devemos considerar mais de uma hipótese. Se alguma coisa deve ser explicada, é preciso pensar em todas as maneiras diferentes pelas quais poderia ser explicada. Depois devemos pensar nos testes que poderiam servir para invalidar sistematicamente cada uma das alternativas. O que sobreviver, a hipótese que resistir a todas as refutáveis nesta seleção darwiniana entre as múltiplas hipóteses eficazes, tem uma chance muito melhor de ser a resposta correta do que se tivéssemos simplesmente adotado a primeira ideia que prendeu nossa imaginação.*
5 – Tente não ser excessivamente ligado a uma hipótese só porque é sua. Ela é apenas uma estação intermediária no caminho pela busca do conhecimento. Pergunte-se porque você gosta da ideia. Compare-a imparcialmente com as alternativas. Veja se você pode encontrar razões para rejeitá-la. Se não o fizer, outros o farão.6 – Quantificar. Se aquilo que você está explicando tem alguma medida, alguma quantidade numérica ligada a ela, você vai ser muito melhor capaz de discriminar entre hipóteses concorrentes. O que é vago e qualitativo está aberto a muitas explicações. Claro que existem verdades que devem ser buscadas nas muitas questões qualitativas que somos obrigados a enfrentar, mas encontrá-las é mais desafiador.7 – Se há uma cadeia de argumentos, todos os elos da cadeia devem funcionar (incluindo a premissa) – e não apenas a maioria deles.8 – Navalha de Occam. Esta conveniente regra de ouro encoraja-nos quando somos confrontados com duas hipóteses que explicam os dados igualmente bem, em escolher a mais simples.9 – Sempre perguntar se a hipótese pode ser, pelo menos em princípio, falseada. Proposições que não são testáveis, irrefutáveis, não valem muito. Considere a grandiosa ideia de que nosso Universo e tudo nele é apenas uma partícula elementar – um elétron, por exemplo – de um Cosmos muito maior. Mas se nunca podemos adquirir informações de fora do nosso Universo, esta ideia não é incapaz de ser refutada? Você deve ser capaz de verificar as afirmações. Aos céticos inveterados deve ser dada a oportunidade de seguir seus raciocínios, a replicar os seus experimentos e ver se eles indicam os mesmos resultados.
Tão importante quanto aprender essas ferramentas úteis, no entanto, é desaprender e evitar as armadilhas mais comuns do senso comum. Lembrando-nos de onde a sociedade é mais vulnerável a essas armadilhas, Sagan escreve:
"Além de nos ensinar o que fazer quando estamos avaliando uma afirmação, qualquer bom kit de detecção de mentiras também deve ensinar-nos o que não fazer. Ele nos ajuda a reconhecer as falácias mais comuns e perigosas da lógica e da retórica. Exemplos muitos bons podem ser encontrados na religião e na política, porque seus praticantes são muitas vezes obrigados a justificar duas proposições contraditórias."
Ele adverte contra as vinte falácias mais comuns e perigosas – muitas enraizadas em nosso desconforto crônico com a ambiguidade – com exemplos de cada uma em ação:

1 – ad hominem – latim para “ao homem”, quando atacamos o argumentador e não o argumento (por exemplo: A reverenda Dr. Smith é uma conhecida fundamentalista bíblica, por isso suas objeções à evolução não precisam ser levadas a sério);2 – argumento de autoridade (por exemplo: O presidente Richard Nixon deve ser reeleito porque ele tem um plano secreto para acabar com a guerra no sudeste asiático – mas porque ele era secreto, não havia nenhuma maneira para o eleitorado avaliá-lo em relação a seus méritos; o argumento equivalia a confiar nele porque ele era presidente: um erro, como se viu posteriormente);3. argumento das consequências adversas (por exemplo: Um deus aplicador de punição e recompensa deve existir, porque se não existisse, a sociedade seria muito mais anárquica e perigosa – talvez até ingovernável. Ou: O réu em um julgamento por homicídio amplamente divulgado deve ser considerado culpado; caso contrário, ele vai ser um incentivo para os outros homens matarem suas esposas);4. apelo à ignorância – a afirmação de que o que não foi provado como falso deve ser verdade, e vice-versa (por exemplo: Não há nenhuma evidência convincente de que os OVNIs não estão visitando a Terra, portanto UFOs existem – e assim há vida inteligente em outros lugares do Universo. Ou: Pode haver setenta zilhões de outros mundos, mas nenhum é conhecido por ter o avanço moral da Terra, por isso ainda somos o centro do Universo). Essa impaciência com a ambiguidade pode ser criticada na frase: ausência de evidência não é evidência de ausência;5. alegação especial, muitas vezes para salvar uma proposição em enormes apuros de retórica (por exemplo: Como pode um deus misericordioso condenar as gerações futuras ao tormento porque, desobedecendo ordens, uma mulher induziu um homem a comer uma maçã? Alegação especial: Você não entende a doutrina sutil do livre-arbítrio. Ou: Como pode haver um pai, um filho e um espírito santo igualmente divinos na mesma pessoa? Alegação especial: Você não entende o Divino Mistério da Santíssima Trindade. Ou: Como deus poderia permitir que os seguidores do judaísmo, cristianismo e islamismo – cada um à sua maneira intimados a medidas heroicas de bondade e compaixão – a terem perpetrado tanta crueldade por tanto tempo?Alegação especial: Você não entende livre arbítrio novamente. E de qualquer maneira, deus age de maneiras misteriosas);6. petição de princípio, também chamado de supor a resposta (por exemplo: Devemos instituir a pena de morte para desencorajar o crime violento. Mas será que a taxa de crimes violentos realmente cai quando a pena de morte é aplicada? Ou: O mercado de ações caiu ontem por causa de um ajuste técnico e da realização de lucros pelos investidores - mas há alguma evidência independente para o papel causal de “ajuste” e da realização de lucros? Nós realmente aprendemos alguma coisa a partir desta pretensa explicação?);7. seleção das observações, também chamada de enumeração de circunstâncias favoráveis, ou como o filósofo Francis Bacon descreveu, contar os acertos e esquecer os erros (por exemplo: O estado “A” se orgulha dos Presidentes que produziu, mas é omisso quanto a seus assassinos em série);8. estatísticas de números pequenos - um parente próximo da seleção de observações (por exemplo: “Dizem que 1 em cada 5 pessoas é chinesa. Como isso é possível? Eu conheço centenas de pessoas, e nenhuma delas é chinesa. Sinceramente”. Ou: Eu joguei três setes seguidos nos dados. Hoje à noite eu não há como perder);9. incompreensão da natureza da estatística (por exemplo: O presidente Dwight Eisenhower expressando espanto e alarme na descoberta de que metade de todos os americanos têm inteligência abaixo da média);10. incoerência (por exemplo: Prudentemente preparar-se para o pior contra um potencial adversário militar, mas ignorar parcimoniosamente projeções científicas sobre perigos ambientais porque elas não foram “comprovadas”. Ou: Atribuir a diminuição na expectativa de vida na ex-União Soviética aos fracassos do comunismo de muitos anos atrás, mas nunca atribuir a alta taxa de mortalidade infantil nos Estados Unidos (uma das mais altas entre os principais países industrializados) aos fracassos do capitalismo. Ou: Considerar razoável que o Universo continue a existir para sempre no futuro, mas julgar absurda a possibilidade de que ele tenha duração infinita no passado);11 – non sequitur - latim para “Não siga” (por exemplo: A nossa nação prevalecerá, porque Deus é grande. Mas quase todas as nações fingem que isso é verdade; a formulação alemã era “Gott mit uns” – deus conosco). Muitas vezes, aqueles que caem na falácia non sequitur simplesmente falharam em reconhecer as alternativas possíveis;12 – post hoc, ergo propter hoc – latim para “aconteceu após um fato, logo foi por ele causado” (por exemplo: Jaime Cardinal Sin, Arcebispo de Manila: “Conheço [...] uma jovem de 26 anos de idade que parece ter 60, porque ela toma contraceptivos orais.” Ou: Antes das mulheres obterem o direito ao voto, não havia armas nucleares);13 – pergunta sem sentido (por exemplo, O que acontece quando uma força irresistível encontra um objeto imóvel? Mas, se existe tal coisa como uma força irresistível, não pode haver objetos imóveis, e vice-versa);14 – exclusão do meio-termo, ou falsa dicotomia – considerando somente os dois extremos em um contínuo de possibilidades intermediárias (por exemplo: “Claro, fique do lado dele; meu marido é perfeito, eu estou sempre errada.” Ou: “Ou você ama seu país ou você o odeia.” Ou: “Se você não é parte da solução, você é parte do problema”);15 – curto prazo versus longo prazo – um subconjunto da “exclusão do meio-termo”, mas tão importante que eu o destaquei para atenção especial (por exemplo: Não podemos arcar com programas para alimentar crianças desnutridas e educar as crianças pré-escolares. Precisamos lidar urgentemente com o crime nas ruas. Ou: Por que explorar o espaço ou aspirar à ciência básica quando temos um déficit orçamentário tão grande?);16 – declive escorregadio, relacionado com a exclusão do meio-termo (por exemplo:Se permitirmos o aborto nas primeiras semanas de gravidez será impossível evitar o assassinato de um recém-nascido a termo. Ou, pelo contrário: Se o Estado proíbe o aborto mesmo no nono mês, em breve ele estará nos dizendo o que fazer com nossos corpos no momento da concepção);17 – confusão entre correlação e causa (por exemplo: Uma pesquisa mostra que há mais homossexuais entre graduados universitários do que entre aqueles com menor nível educacional, portanto a educação torna as pessoas gay. Ou: Os terremotos andinos estão correlacionados com aproximações do planeta Urano; portanto – apesar da ausência de qualquer correlação semelhante para o planeta Júpiter, que é muito mais maciço e mais próximo – Urano é a causa dos terremotos);18 – espantalho – caricaturar uma posição para torná-la mais fácil o ataque (por exemplo: Os cientistas supõem que as coisas vivas simplesmente se juntaram ao acaso – uma formulação que deliberadamente ignora a visão darwiniana central, que a Natureza se ajusta, mantendo o que funciona e descartando o que não funciona. Ou – esta é também uma falácia de curto prazo x longo prazo –ambientalistas se preocupam mais com caracóis e corujas do que com pessoas);19 – evidência suprimida, ou meia verdade (por exemplo: Uma “profecia” surpreendentemente precisa e amplamente citada do atentado contra o presidente Reagan é mostrada na televisão, mas – detalhe importante – ela foi gravada antes ou depois do evento? Ou: Estes abusos do governo exigem uma revolução, mesmo que sejam necessários alguns sacrifícios. Sim, mas é provável que esta seja uma revolução em que muito mais pessoas serão mortas do que sob o regime anterior? O que a experiência de outras revoluções sugere? Todas as revoluções contra regimes opressivos são desejáveis e nos interesses do povo?);20 – afirmações ambíguas (por exemplo, a separação de poderes da Constituição dos EUA especifica que os Estados Unidos não podem conduzir uma guerra sem uma declaração do Congresso. Por outro lado, aos presidentes são dados o controle da política externa e da condução de guerras, que são ferramentas poderosas para potencialmente reelegê-los. Presidentes de qualquer partido político podem, portanto, ser tentados a organizar guerras ao acenar a bandeira e chamar as guerras de outras coisas – “ações policiais”, “incursões armadas”, “ataques de reação de proteção”, “pacificação”, “salvaguardando os interesses americanos”, e uma ampla variedade de “operações”, como a “Operação Justa Causa”. Eufemismos para a guerra são apenas uma de uma ampla classe de reinvenções da linguagem para fins políticos. Talleyrand disse: “Uma arte importante dos políticos é encontrar novos nomes para as instituições que sob nomes antigos se tornaram odiosas ao público”).
Sagan termina o capítulo com um aviso necessário:
"Como todas os instrumentos, o kit de detecção de mentiras pode ser mal utilizado, aplicado fora do contexto, ou até mesmo empregado como um hábito alternativo ao pensar. Mas, aplicado judiciosamente, pode fazer toda a diferença do mundo – e não menos na avaliação de nossos próprios argumentos antes de que nós os apresentemos aos outros."
O Mundo Assombrado pelos Demônios é uma leitura fantástica em sua totalidade, mais oportuno do que nunca em um grande número de formas em meio a nosso atual panorama da mídia de propaganda, pseudociência, e vários motivos comerciais. Complemente isso com Sagan falando sobre ciência e "Deus".
Texto original: Maria Popova do site Brainpickings. Tradução e adaptação: Felipe Sérvulo